Por Paulo Ribeiro*
Minha recusa inicial em descrever o personagem Arthur Greeves resultou em um retrato dele incompleto, por outra mão, que a justiça e a caridade me obrigam a complementar. Não o contradiz, nem o acuso de malícia. É o trabalho de quem conheceu o assunto menos intimamente do que eu e que viu apenas a superfície de um personagem cujas falhas eram óbvias aos olhos.
Arthur era o filho mais novo de uma mãe amorosa e de um pai severo, dois males que se alimentavam um do outro. A mãe o acalentava para compensar a dureza do pai; e, o pai tornou-se mais duro para combater os efeitos nocivos da indulgência da mãe. Ambos conspiraram para agravar uma tendência – não rara na natureza humana – à autocomiseração.
Pode-se imaginar facilmente como essa criança cresceu. Mas quem poderia ter predito que ele não seria mentiroso, nem contador de histórias, nem covarde, nem cínico? Ele era o mais franco dos homens.
Ele era cristão, e eu, ateu.
Era o mais fiel dos amigos e carregava segredos da minha própria adolescência
Ele era o mais fiel dos amigos e carregava os inúmeros segredos da minha própria adolescência furtiva e ignóbil, trancados em um silêncio completo. Sobre a doença ou inconveniência, ele era impaciente, mas não um resmungão; mas o perigo o deixava indiferente. Ele não tinha medo de alturaes e, como motorista, era impulsivo, mas surpreendentemente competente. Ele estava muito isolado de seus semelhantes, não apenas pela saúde real e supostamente debilitada, mas pelos gostos literários e artísticos que ninguém da família e poucos vizinhos compartilhavam.
Até eu o conhecer, e durante minhas frequentes ausências, sua posição era a mesma de um garoto imaginativo em uma de nossas escolas públicas. No entanto, ele nunca mostrou qualquer inclinação para se vingar da “intelligentsia” moderna. Ele continuou a sentir – e me ensinou a sentir com ele –, ao mesmo tempo, um afeto humano e um rico prazer estético por suas tias antediluvianas, seus tios proprietários de moinhos, os servos de sua mãe, o carteiro em nossas estradas e os camponeses que nós conhecemos em nossas caminhadas. O que ele chamava de "caseiro" era comida natural, tanto de seu coração quanto de sua imaginação. Um coração brilhante visto através de uma porta aberta, um bando de patos seguindo a esposa de um fazendeiro musculoso, uma broca de repolhos em uma horta suburbana – essas eram coisas que nunca deixavam de movê-lo, mesmo em êxtase, e ele nunca as achava incompatível com sua admiração por Proust, Wyndham ou Picasso.
Ele era completamente não-mundano. Ele nunca na vida leu um livro ‘avançado’ ou imitou um pintor ‘moderno’ porque sentia que poderia se tornar um ser superior. O motivo sempre foi o prazer genuíno deles ou o conselho de amigos mal escolhidos. Pois Arthur era ao mesmo tempo humilde e instável. Ele poderia ser persuadido a ler, ou pelo menos começar, qualquer livro: adotar (por um tempo) qualquer cânone. O último orador estava sempre certo para ele. Mas todas essas flutuações prosseguiram sobre uma constância fundamental: o encanto com o "caseiro" nunca era falso e, se ele era facilmente atraído pelas loucuras de todo e qualquer círculo (pequeno grupo), ele não poderia, no processo, ser infectado pelo orgulho.
Se eu tivesse que escrever seu epitáfio, eu diria sobre ele o que eu não poderia dizer de qualquer outra pessoa que conheci
Nos primeiros anos de nosso conhecimento, ele era (como sempre) um cristão, e eu era ateu. Mas embora (Deus me perdoe) eu o bombardeasse com toda a artilharia fina de um racionalista de dezessete anos de idade, nunca fiz nenhuma pressão sobre sua fé – uma fé vaga e confusa, e de certa forma indulgente à nossa fraqueza comum, mas inexpugnável. Ele continua vitorioso nesse debate. Fui eu quem retornei. A coisa é simbólica de muitas ocorrências em nossa história conjunta. Ele não era um garoto inteligente; eu era um estudioso. Ele não tinha "ideias". Eu transbordava com elas. Pode parecer que eu tinha muito a lhe dar e que ele não tinha nada para me dar. Mas isso não é verdade. Eu poderia dar conceitos, lógica, fatos, argumentos, mas ele tinha sentimentos a oferecer, sentimentos que misteriosamente – pois ele sempre foi muito desarticulado – ele me ensinou a compartilhar. Por isso, nas nossas trocas, lidei com a superfície, mas ele com o concreto. Aprendi caridade com ele e falhei, por todos os meus esforços, em ensinar-lhe arrogância em troca.
E como mencionei a caridade, devo falar da "caridade" dele em um sentido mais restrito. Isso era todo seu, toda virtude e nenhuma natureza. A hereditariedade e o treinamento inicial o haviam imposto como uma maldição natural o amor ao dinheiro. Mas ele o conquistou. Ele veio para ajudar, quase inteiramente, um homem desempregado e para me oferecer assistência nos meus tempos de necessidade. Ele veio (talvez uma coisa mais difícil para um homem constitucionalmente preguiçoso) cumprir tarefas regulares em uma organização de caridade. A esse respeito, ele derrotou sua natureza. Contra a gula – outro vício hereditário – ele foi menos bem-sucedido: ele sempre foi preocupado com a saúde e era vítima dos médicos e também da sua autopiedade.
Mas se eu tivesse que escrever seu epitáfio, eu diria sobre ele o que eu não poderia dizer de qualquer outra pessoa que conheci: "Ele não desprezava nada". Desprezo é, se não o pior, certamente o mais ridículo dos pecados que nós cometemos e, creio, era desconhecido para ele. Ele cumpriu o preceito do Evangelho: "ele não julgava."
“Não julguem para não serem julgados, pois vocês serão julgados pelo modo como julgam os outros. O padrão de medida que adotarem será usado para medi-los” (Mt 7.1-2).
*Tradução e adaptação de Lewis Papers, vol. X, pp. 218-20 (1935).
https://www.ultimato.com.br/conteudo/c-s-lewis-fala-sobre-seu-melhor-amigo-uma-reflexao-para-a-quarentena